[...] Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,[...] Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/ E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./Sigo o fumo como uma rota própria, [...]
Fernando Pessoa
Cigarro. Monstruosidade. Cigarro. Pito. Baga aponta. A palha, o fumo, o dedo, a saliva, a baba, o cuspi, o escarro e o escárnio. Da fumaça se ex-palha. A fumaça vai e vem e nesta rarefação leva e traz como um mar, um par, um porto, um morto. Contração pulmonar e expansão do instante. Temporalidade do cigarro. A não tensa dilatação. A conversação cirragada, o pigarro do passivo. A palha, o fumo terra-sombra-natural e a baba neste cigarro enrolado. Cigarro, um diálogo, diálogo sacrificante – há uma troca, negociação, conversa a dois. Ele dialoga enquanto fogo. O fogo tão mínimo neste caso, move, dele dependem, sem ele não há, mas para haver basta um pau e um atrito. O fogo movimenta, é a fumaça, é ele o calor, é ele a palha. Palha lentidão terrestre. Palha solar e fogo pontual. Tabaco sol vegetal quase comível, come tecidos, carboniza e obstrui. Obstrui trânsitos para liberar sempre outros. Cigarro branco, cigarro de papel, maço. Duas coisas que provocam um monólogo. O cigarro branco não dialoga, o branco monologa. O branco se fuma, basta aceso estar. Pólvora-gatilho: ação de um. Papel e pólvora, a aceleração das coisas, coisificação da aceleração. Um sobre o outro. Não um com o outro. Chocar-galináceo/chocar-futurista. O papel fede. O papel queimado é cinza e o cinzar cindi e destila incêndios. O incendiário no dia a dia do papel queimado na lata, no chão, na cinza e no -eiro. Vou fumar! Escapo sem resistência. Vou e fim. Nunca há cerco. Por dó? Por respeito? Por medo de ter de fumar um dia... por medo do sacrifício. Dar e receber até o limite, na tensão que instaura e na auto-regulação ilusória que exercita. Excitante o cigarro. Cigarro e vigília. Efeitos e disparos. Bloqueios e aberturas. Composição, dimensão estética do cigarro que faz delirar a ética que instaura. É escolha. Escolher é abandonar. Escolhe-se isso e não todas as outras coisas. A escolha, a única escolha única é o um que a marca e destila. O recurso, o último recurso, daqui não avanço! ou avanço como um cão, um cão do interior, um monstro do inferno. Este monstro libera fluxos, sopra, expele. Expele odores e cores e linhas. O sopro não humano via cigarro. O sopro envia fumaça. O sopro retém fumaça no seio da motriz e marca a distância que se expande e expande até não existir. Marcar territórios com fumaça, anéis de fumaça, alianças redondas e não circulares. O redondo até o nada. As ventas que liberam algo que não é produzido ali. O estranhamento. A marcação do território. Território existencial. Cigarro. E distância. A toce, a secreção, o catarro, a rouquidão, o fedor nas roupas e cabelo, os dentes amarelados, o dente animalesco, o dedo não mais aquele, o tingimento de tudo em ocre, como o rei que a tudo toca e vira – ouro nauseabundo – e tinge com um pigmento composto de ar e calor: tornar-se monstro. Fumar é tencionar com Tânatos, tencionar com Eros, correr com Apolo e cair no abismo com Dionísio. No fundo do abismo a dança e o canto. Dançar com monstros que nunca ascendem. Monstros subterrâneos entendedores daquilo da superfície para além dos que pousam sobre a casca e delicadamente pisam. Pisar em ovos é fazer festim num complexo de cavernas. Monstro e cigarralidade. Animalidade aflorada e monstruosidade latente. Da fumaça veio e para ela irá.