domingo, 25 de dezembro de 2011

Do cigarro. Da monstruosidade.



[...] Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,[...] Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/ E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./Sigo o fumo como uma rota própria, [...]

Fernando Pessoa


Cigarro. Monstruosidade. Cigarro. Pito. Baga aponta. A palha, o fumo, o dedo, a saliva, a baba, o cuspi, o escarro e o escárnio. Da fumaça se ex-palha. A fumaça vai e vem e nesta rarefação leva e traz como um mar, um par, um porto, um morto. Contração pulmonar e expansão do instante. Temporalidade do cigarro. A não tensa dilatação. A conversação cirragada, o pigarro do passivo. A palha, o fumo terra-sombra-natural e a baba neste cigarro enrolado. Cigarro, um diálogo, diálogo sacrificante – há uma troca, negociação, conversa a dois. Ele dialoga enquanto fogo. O fogo tão mínimo neste caso, move, dele dependem, sem ele não há, mas para haver basta um pau e um atrito. O fogo movimenta, é a fumaça, é ele o calor, é ele a palha. Palha lentidão terrestre. Palha solar e fogo pontual. Tabaco sol vegetal quase comível, come tecidos, carboniza e obstrui. Obstrui trânsitos para liberar sempre outros. Cigarro branco, cigarro de papel, maço. Duas coisas que provocam um monólogo. O cigarro branco não dialoga, o branco monologa. O branco se fuma, basta aceso estar. Pólvora-gatilho: ação de um. Papel e pólvora, a aceleração das coisas, coisificação da aceleração. Um sobre o outro. Não um com o outro. Chocar-galináceo/chocar-futurista. O papel fede. O papel queimado é cinza e o cinzar cindi e destila incêndios. O incendiário no dia a dia do papel queimado na lata, no chão, na cinza e no -eiro. Vou fumar! Escapo sem resistência. Vou e fim. Nunca há cerco. Por dó? Por respeito? Por medo de ter de fumar um dia... por medo do sacrifício. Dar e receber até o limite, na tensão que instaura e na auto-regulação ilusória que exercita. Excitante o cigarro. Cigarro e vigília. Efeitos e disparos. Bloqueios e aberturas. Composição, dimensão estética do cigarro que faz delirar a ética que instaura. É escolha. Escolher é abandonar. Escolhe-se isso e não todas as outras coisas. A escolha, a única escolha única é o um que a marca e destila. O recurso, o último recurso, daqui não avanço! ou avanço como um cão, um cão do interior, um monstro do inferno. Este monstro libera fluxos, sopra, expele. Expele odores e cores e linhas. O sopro não humano via cigarro. O sopro envia fumaça. O sopro retém fumaça no seio da motriz e marca a distância que se expande e expande até não existir. Marcar territórios com fumaça, anéis de fumaça, alianças redondas e não circulares. O redondo até o nada. As ventas que liberam algo que não é produzido ali. O estranhamento. A marcação do território. Território existencial. Cigarro. E distância. A toce, a secreção, o catarro, a rouquidão, o fedor nas roupas e cabelo, os dentes amarelados, o dente animalesco, o dedo não mais aquele, o tingimento de tudo em ocre, como o rei que a tudo toca e vira – ouro nauseabundo – e tinge com um pigmento composto de ar e calor: tornar-se monstro. Fumar é tencionar com Tânatos, tencionar com Eros, correr com Apolo e cair no abismo com Dionísio. No fundo do abismo a dança e o canto. Dançar com monstros que nunca ascendem. Monstros subterrâneos entendedores daquilo da superfície para além dos que pousam sobre a casca e delicadamente pisam. Pisar em ovos é fazer festim num complexo de cavernas. Monstro e cigarralidade. Animalidade aflorada e monstruosidade latente. Da fumaça veio e para ela irá.



Luís Carbogim, artista, professor e mestre em educação, atualmente é Analista Pedagógico - Arte (SRE/Juiz de Fora).


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Lança e Presa

         Acuar o javali até aquele ponto foi uma tarefa difícil, duas noites de chuva dormindo em barracas transformavam qualquer grupo, com lanças e cães de caça famintos, em uma massa feroz. A floresta fechada e escura durante o dia e chuvosa à noite fez o frenesi da caça ficar mais intenso.
Agora, contudo, na terceira noite, da chuva restava apenas uma lembrança úmida.
Três luas correndo e fugindo fizeram do forte animal uma sombra do que fora dias atrás. Sangrava onde os cães o haviam mordido. Suas narinas dilatadas, a respiração pesada e o fio de saliva que escorria da bocarra horrenda revelavam a exaustão que tomava conta do animal: o monstro foi cercado em um barranco e não tinha alternativa além de se atirar contra a parede de homens e lanças. O cheiro de medo exalando dos caçadores gritava nos sentidos do animal, dizendo talvez que tivesse uma chance.
Juntos, os caçadores formavam outro monstro maior e mais violento que qualquer javali. O frenesi da caça impedia o medo de dominar completamente os homens, apesar dos mais experientes observavam com os cantos dos olhos um ou outro novato tremer um pouco quando o animal dava qualquer sinal de movimento.
 Bufando, o colosso escolheu aquele que lhe parecia o mais fraco dos alvos e se atirou com ferocidade correndo ao encontro do seu destino. Saltou. O homem enterrou o cabo da lança na lama e a ponta afiada atingiu o monstro bem no coração, a dormência da morte atingiu as feições do animal bem depois do grito de dor e rapidamente os espasmos cessaram. A última coisa que o grande javali ouviu foram os gritos de alegria dos caçadores, grunhidos assustadores que acordaram toda a floresta. Gritos que, contudo, se distanciavam de seus ouvidos como se já de fato não pertencessem mais a este mundo.


Filipe Augusto


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A paca e o devir-animal



Sou vegano e como carne. Carne de paca.
Sou carnívoro e como frutas. Frutas opacas da paca.
Sou ovolactovegetariano e como hormônio. Hormônio de galinha e não de paca.
Sou onívoro e como de um tudo. Defeco monstros.
A espingarda de dois canos pendurada na parede da cozinha é a distância do ancião Carbogim.
O mestiço, o cachorro mestiço basset com americano, é o animal de caça. O mestiço come angu de moinho d’água, angu com ossos. Os ossos são de galo, de asa branca, rolinha e paca. Restos do comido.
Limpar o cano da espingarda. Guarda e aguarda.
A luz da Tocha, amiga de Curupira, aquece o temor do caçador e faz rastejar os mestiços.
A tocha é um monstro e atirei nela. Um tiro de dois canos criou um monstro.
Crisaor: o monstro gerador de monstros.
Vegetariano que come carne.
Carnívoro que flerta com Vertumnus.
Não-fumante que fuma.
Alcoólatra que não bebe.
Soo suor. Molhado seco, apelo olfativo e barba a contrapelo. Churréia sem dedos. Golas puídas.
No ecótono cidade-mata habita um monstro endêmico: eucótono.
Sou um monstro.
O outro é um monstro.
Sou o outro que são ambos.
Luís Carbogim, artista, professor e mestre em educação, atualmente é Analista Pedagógico - Arte (SRE/Juiz de Fora).